Para Wadislau Gomes
Como sempre fazia, reuniu em casa a turma dos seminaristas alguns dias antes da formatura, a quem já andara aconselhando aqui e ali. Oferecia o atrativo do quintal enorme, cheio de árvores muito antigas, onde cabia bastante gente. Nessas ocasiões, gostava de dar uma palavra de encorajamento, de exortação, “um empurrãozinho pra fora do ninho”, como dizia. Dessa vez, porém, seria um pouco diferente. O diálogo de Natã com Davi não lhe saía da cabeça — e ele ria de si para si, ansioso. Carne no fogo, todos em pé à volta da churrasqueira (naquele friozinho, era bom) e a gostosa antecipação de ouvir o mestre. Que será que aprontaria? Não sem antes ajeitar os óculos, ele abriu a Bíblia para tirar de dentro um papel todo rabiscado a mão. E começou a ler:
“Era uma vez uma família com dez filhos, cinco obedientes e cinco desobedientes. Preocupado com os desobedientes, o pai os disciplinava com regularidade e não perdia uma chance de ensiná-los e guiá-los na vida. À mesa do jantar, desfiava histórias apavorantes sobre meninos que teriam um triste destino como consequência de suas traquinagens, não fosse um acontecimento que os salvava pelo gongo. Tranquilo em relação aos obedientes, apenas os estimulava a continuarem do mesmo jeito, dando-lhes tapinhas amistosos nas cabeças de vez em quando.
À noite, enquanto os filhos desobedientes dormiam em paz, os obedientes sofriam diante de Deus. Faziam baixinho suas orações, como haviam aprendido, mas as palavras vinham de corações aterrorizados com todas as histórias que haviam ouvido no jantar. Mais escondiam que revelavam; agradeciam porque deviam fazê-lo, mas os corações não estavam gratos: estavam cheios de medo. [Nesse ponto, ergueu os olhos do papel para encarar os rapazes com as sobrancelhas arqueadas: um itálico facial.] Vez após vez, contemplavam um Deus que brandia a vara ameaçadora contra os que não andassem na linha. Não mentiam, não batiam uns nos outros, não pegavam comida escondido. Mas suas mentes eram invadidas por pensamentos horríveis. No fundo, sabiam que eram maus. A Bíblia lhes dizia que eram maus, sim, mas eles o sabiam no mais íntimo, por causa desses pensamentos e sentimentos. Obedecer era melhor, mas não era o bastante para aplacar a culpa que roía seus corações todos os dias por aquilo que permanecia invisível.
Faziam de tudo para obter harmonia à volta, mas por dentro estavam um caos.
Porém, como o pai não os via por dentro, não se incomodava. Eram obedientes. O problema estava com os outros cinco, que recebiam toda a atenção — mas, coisa estranha, não reagiam à altura. Continuavam a desobedecer como se não houvesse amanhã.”
Olhou então para os presentes com um meio sorriso. Os olhares de volta eram curiosos e interrogativos: a história não teria fim? Toda história que o velho contava tinha fim. Geralmente, um fim divertido antes da lição.
Foi quando ele declarou:
“Isso, meus caros, é o que eu tenho visto em muitas igrejas, dia após dia, nesta minha vida de pastor aposentado…”
Diante do olhar atônito da audiência, continuou:
“Concentram toda a sua pregação nos cristãos nominais ou naqueles que não estão muito firmes. Falam do pecado e da queda com muito mais ênfase do que na criação e na redenção, porque sabem que é disso que esses ‘filhos desobedientes’ mais precisam. Mas esses não são os únicos ‘filhos’ que vocês terão. Os obedientes precisam ser aliviados do fardo do excesso de consciência. Não ocultam pecados e buscam a Deus com toda a força, mas acham que deviam ser perfeitos e sabem que não são. Vivem um inferno interior — e ninguém lhes diz que são amados. Ninguém lhes mostra o sorriso do Pai, não para sua obediência, mas para sua alma alcançada pelo Filho e santificada pelo Espírito.
O problema, queridos amigos, é que, enquanto sua pregação focar apenas no pecado, nem os desobedientes virão, nem os obedientes serão aliviados. Os desobedientes estão cegos; precisam se apaixonar por Deus. Os obedientes que sofrem estão confusos; precisam compreender melhor a profundidade do amor, que independe do desempenho.
Hoje eu só tenho a dizer isso a vocês. Preguem a criação. Preguem a redenção. Preguem Deus por inteiro.”
Tornou a guardar o papel em sua Bíblia, enquanto a mulher chamava a todos para os primeiros pedaços de carne na brasa.