A vida cristã é necessariamente uma vida interiorizada. A conversão começa com um olhar duplo: para cima e para dentro. Por sua graça, Deus nos dá um conhecimento correto (não exaustivo) de si mesmo e um conhecimento realista (também não exaustivo) de quem somos. Embora o perdão nos seja dado de uma vez para sempre, esse primeiro arrependimento — “purifica-me do meu pecado” (Sl 51) — precisa ser renovado em toda a caminhada cristã, pois é no tempo que Deus se encontra com seus filhos.
A caminhada com Deus pode conter muitos reveses. É possível começar bem, mas perder-se em algum momento, principalmente quando se está em posição de poder. Penso que foi o que ocorreu a Davi, que cometeu seus maiores pecados, tanto em gravidade quanto em consequências, depois que se tornou rei e gozou de certa estabilidade.
É assim que um cotidiano todo exteriorizado, voltado para as demandas de nossas responsabilidades na igreja, pode acabar nos mudando para pior. Diante da aprovação geral e dos elogios, nós nos enganamos, como se fôssemos canais exclusivos de bênção, como se apenas o outro precisasse de santificação. Nós nos acostumamos com uma leitura funcional da Bíblia, atrelada somente ao bem que podemos fazer e ao discernimento exclusivo dos pecados dos outros e da cultura — jamais os próprios. Passamos a nos avaliar fundamentalmente de acordo com o impacto de nossas ações, e não de acordo com o coração de Deus. O tempo de qualidade com Deus, consigo e com os queridos se torna quase inexistente, pois o que somos se resume a nossa utilidade, e nisso nos rebaixamos, deixando de nos enxergar como filhos e adoradores em primeiro lugar.
Esse apontar exclusivo para fora, combinado aos pecados ocultos do coração, forma uma mistura explosiva. A desonestidade não permanece só no olhar, mas gera destruição. Aquela visão realista de nós mesmos desaparece, dando lugar à ilusão de ser deus para o outro. Sim, tudo isso pode ocorrer dentro de um ministério evangélico! E, à medida que o ministério cresce, orgulho e ganância podem tomar a frente. Mascarar a culpa interior com trajes evangélicos é algo perverso, mas bem possível quando passamos de trator por cima da percepção de nossos pecados. Por isso o arrependimento é contínuo; por isso, a vida com Deus é de momento a momento.
Essa é uma tentação para todos, não apenas os líderes: quem não cultiva uma vida oculta com Deus tentará achar sentido para a vida na aprovação humana, transformando os outros em combustível para uma identidade autoforjada que não trará satisfação alguma. A vida oculta com Deus é infinitamente mais rica que a vida sob os holofotes, e é nela que se encontra o valor real de cada pessoa diante de Deus. Nisso está a verdadeira alegria: aprender a admirar os movimentos de Deus em nossa história, mantendo-nos abertos para cada pequeno aspecto desse aprendizado.